O netinho liga para o vovô:
– Vô, já está chegando? Já são 3 horas…
O avô responde:
– Desculpe, meu querido, surgiu um imprevisto e não poderei ir.
O neto insiste:
– Virá amanhã? Eu chego perto das 2 horas da escola. Eu te esperarei, vô.
Após um longo silêncio, a resposta:
– Ainda não posso confirmar, meu neto querido. Eu te ligo mais tarde. Beijos.
Essa situação já se alonga há mais de um mês. Em outro momento, telefonema do consultório médico:
– O senhor não compareceu novamente, está tudo bem? Vamos remarcar para a próxima quinta-feira, mesmo horário?
O idoso balbuciou algumas palavras, se desculpando e nada esclarecendo. Mas aceitou remarcar. Desanimado, voltou para a cama e lá ficou estirado. Há meses assim, após um ano do início da pandemia. Estava tão desmotivado que nem mesmo comparecia aos antes costumeiros encontros semanais com as filhas e netos: aos sábados à noite pizza; aos domingos almoço, chá das cinco horas. Mesmo tendo tomado as três doses da vacina, não se sentia seguro em sair de casa e quando saía, usava duas máscaras, boné e óculos, além de uma pequena bisnaga com álcool em gel no bolso. Se tivesse alguém no elevador, não entrava, esperava o retorno, vazio. Nos supermercados, só caminhava por corredores desertos, mantinha distância em dobro na fila para os caixas. Ao voltar para casa, uma verdadeira maratona de cuidados, desinfecção, higienização. Tornou-se obsessivo, medroso, inseguro. Tinha todos os sintomas da Síndrome do Pânico, mas não contava nada para os familiares e amigos. Chegou até a escrever um texto sobre um novo cidadão urbano: o “idroso”, misto de idoso e medroso. Em pouco tempo percebeu que deveria acrescentar “procrastinador” ao novo cidadão: “idrosodor”: idoso + medroso + procrastinador.
Os amigos, acostumados a vê-lo todo animado nos encontros musicais semanais, sempre lhe telefonavam, cobrando a presença. Um desses amigos, o Lepo, tanto insistiu que conseguiu arrancar a verdadeira situação: pânico de sair de casa. Este amigo então o aconselhou: “- Fale com nosso amigo Nei, ele poderá te ajudar. Irei te buscar e iremos ao consultório dele.” Mas o “idrosodor” recusou, agradeceu, dizendo que iria telefonar para o Nei.
Passaram-se semanas e nada de telefonar. Certo dia o tal Nei lhe telefonou, bateu aquele papo, recordaram fatos passados, afinal, era mais de quarenta anos de conhecimento, tudo começou com contatos profissionais e evoluiu para uma amizade sincera. Entre uma conversa e outra, o Nei recomendou: “- Amigo, faça algo simples assim: Todos os dias, quando se levantar, escreva algumas linhas sobre suas melhores lembranças, salve no Word e me envie por e-mail. Não se preocupe se o texto estiver inacabado. No dia seguinte você escreve sobre outras lembranças, fatos pitorescos, enfim, qualquer recordação, mesmo que seja triste, como a perda de familiares ou animais de estimação. Importante é que dia após dia você me envie um novo texto por e-mail. No final de um mês teremos uns 28 a 30 relatos. Em um ano uns 360 textos. Estamos combinados?”
O idrosodor topou a parada. Passou a acordar mais cedo, para poder escrever e corrigir seus textos, cada dia mais conclusos. Em pouco tempo percebeu que se preparar para sair de casa já não era mais um martírio, voltou a fazer caminhadas matinais, a se alimentar melhor. Acabou o desconforto gastrointestinal, as dores no peito, nas costas, pernas e pés. Durante o dia voltou a ouvir suas músicas preferidas (tinha centenas de CDs e DVDs de música popular). E finalmente agendou seu retorno para os reencontros semanais com as filhas e netos e os saraus com os amigos. Também marcou uma consulta com seu amigo Nei. Será que vai cumprir? Saberemos nos próximos meses. Até lá.
Juares de Marcos Jardim o Sacy Pererê do Grande ABC é WebRepórter ABCD Rádio Livre. Escritor, historiador e percussionista